Quando o jornalismo conta histórias, entrevista com Edvaldo Pereira Lima

Por Amanda Damasceno e Elisama Ximenes e publicada originalmente na Revista Becos Comunicantes.

Edvaldo Pereira Lima , uma referência em Jornalismo Literário no Brasil

Edvaldo Pereira Lima

Professor aposentado da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Co-fundador e professor da Academia Brasileira de Jornalismo Literário em São Paulo. Criador do método Escrita Total. Diretor do curso pioneiro de pós-graduação em Jornalismo Literário no país. Autor com vários livros, entre teóricos e narrativos, já publicados. E tudo isso é apenas parte de seu extenso currículo. Um dos precursores do Jornalismo Literário, Edvaldo Pereira Lima, conversou com a Becos Comunicantes e tratou dos desafios que quem decide trabalhar com esse outro modo de se fazer jornalismo enfrenta. Além de discutir o cenário do Jornalismo Literário no país e dar sugestões de autores e obras para quem se interessa pelo assunto.

Becos ComunicantesQual é o cenário atual do Jornalismo Literário no país? E o JL dentro do Brasil tem características próprias que o diferenciam do de outros países?

Edvaldo Pereira Lima — Como sempre no Brasil, salvo a exceção do período de ouro do Jornal da Tarde (de São Paulo) e da revista Realidade nas décadas de 1960 e 1970, o Jornalismo Literário por aqui é mais fruto de ações individuais de autores e editores do que resultado de projeto editorial consistente e regular por parte dos veículos. Assim, você encontra matérias em estilo de Jornalismo Literário na produção isolada de profissionais, aqui e ali. Nos meios impressos, você encontra bons exemplos, de vez em quando, na revista Piauí, na revista Brasileiros, em jornais do porte de O Estado de S. Paulo e Correio Braziliense, por exemplo. Fora dos grandes centros e da grande mídia de alcance nacional, de vez em quando você encontra ótimas iniciativas, como por exemplo, o período, algum tempo atrás, em que o jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, publicou uma série de perfis de pessoas anônimas ou quase anônimas. Também o jornal Cruzeiro do Sul, de Sorocaba (SP), publicou há um tempo a ótima série de Leila Gapy sobre uma sobrevivente da bomba atômica lançada sobre Nagasaki ao final da II Guerra Mundial que viveu no Brasil. E há muitos bons exemplos em formato de livro-reportagem, sejam os publicados comercialmente ou produzidos em TCC de graduação em jornalismo.

Tenho o prazer de verificar que muitos desses casos, especialmente em livros, têm autoria de profissionais que fizeram o curso de pós-graduação em Jornalismo Literário que tenho a honra de dirigir, o único do país, já em seu décimo ano de realização. São os casos recentes, por exemplo, de Ruth Rendeiro, e seu livro “Até Que o Câncer nos Separe”, Abner Laurindo e “Meu Tio Levou um Tiro”, Daine Andrade (em coautoria com Jessé Henrique) e “A Trajetória dos Condenados”. Também está presente na matéria vencedora Arcelina Helena e “Memória e Libertação”. Os meus próprios livros narrativos são produzidos em estilo de Jornalismo Literário, como é o caso recente de “Maestro de Voo – Pedro Janot e Azul – Uma Vida em Desafios”. Além disso, está presente em eventos importantes, como o Prêmio Clóvis Barbosa de Jornalismo Literário da cidade de Manaus, conquistado recentemente pela pós-graduada em Jornalismo Literário Andréa Ascenção, com sua matéria “O Homem da Segunda Chance”.

Por sinal, outra pós-graduada, Samantha Silva, conquistou um prêmio nacional de jornalismo, concedido pelo Sebrae, com sua matéria “Lingerie tira mulheres do campo e faz polo virar realidade em Juruaia”, publicada no jornal digital “G1 Sul de Minas”. Assim, o Jornalismo Literário continua pulsante à margem do modelo jornalístico predominante, às vezes nos surpreendendo com matérias de boa qualidade fora do eixo Rio-São Paulo.
O jornalismo literário no Brasil apresenta algumas características que levemente o diferenciam do que se pratica comumente nos Estados Unidos, por exemplo. Mas isso se deve mais ao estilo próprio do autor do que propriamente ao modelo empregado no Brasil. Se você lê uma boa narrativa de não ficção de Eliane Brum, pode encontrar um olhar poético peculiar. E se lê Christian Carvalho da Cruz, pode encontrar um bom humor que talvez não seja muito comum em autores norte-americanos. Ao lado de tudo isso, o Jornalismo Literário está presente em iniciativas empreendedoras. Em Goiânia, por exemplo, as jornalistas Raquel Pinho, Amanda Costa e Carla Lacerda do Nascimento participam de distintos projetos de empresas de comunicação que empregam o Jornalismo Literário quando possível.

B.C.Quais os maiores desafios de alguém que escolhe seguir com o JL enfrenta nos veículos de comunicação tradicionais?

E.P.L.— Creio que há dois problemas centrais. O primeiro é o desconhecimento que muitos editores têm do Jornalismo Literário. Se fala muito do JL, mas se conhece muito pouco, na verdade. Esse desconhecimento impede que o editor vislumbre as possibilidades que o JL oferece para que os veículos conquistem e mantenham leitores. Por exemplo, a diversidade de formatos narrativos. Pensa-se, quem não o conhece bem, que o JL só pode ser praticado em matérias longas e que demandam muito tempo de apuração. Mas também existe no Jornalismo Literário o formato curto e para cobertura diária. É uma questão de se dominar a arte e os amplos recursos narrativos da modalidade, para se tirar bom proveito.

A essência do jornalismo literário é contar histórias reais com sabor e estilo, centrada em figuras humanas. Por isso o leitor adora ler, na maioria dos casos, quando o veículo oferece esse estilo. Assim, o autor que queira praticar o Jornalismo Literário nas redações precisa batalhar com segurança e determinação para conquistar espaço, aproveitando todas as oportunidades. Precisa ter espírito empreendedor e ser criativo, gerando iniciativas que mobilizem o apoio dos veículos ou partindo para criar projetos culturais diferenciados e independentes, se necessário. O segundo problema é a mentalidade reinante nas redações que desfavorece a prática do bom texto e da reportagem de profundidade, em favor do texto informativo raso.

O paradoxal é que os veículos lutam para conquistar e não perder público. Um dos fatores dessa perda é a chatice da maioria dos textos jornalísticos, a mesmice da cobertura e a visão rasa dos acontecimentos. Para mim, soa como quase inacreditável que os donos do poder, nos veículos jornalísticos, não percebam que o leitor quer não textos burocráticos e vazios, mas, sim, matérias produzidas como boas histórias. Tanto as pessoas querem boas histórias da vida real, contadas com qualidade, que procuram – e encontram – narrativas assim nos ótimos documentários cinematográficos do Brasil atual, assim como encontram em bons livros-reportagem, na sólida produção de biografias que temos hoje no país.

O desafio de tudo isso, para quem deseja encontrar seu lugar ao sol no território do Jornalismo Literário, é se informar, se qualificar e apreender bem o rico arsenal de recursos dessa modalidade jornalística, conseguindo, então, utilizar a herança cultural de tantos mestres de uma maneira nova e criativa, autoral.

B.C. — Como o senhor enxerga o ensino do JL nos cursos de Jornalismo?

E.P.L.— Houve progresso visível desde a década de 1990, quando o Jornalismo Literário começou a chegar aos cursos de graduação de maneira um pouco mais consistente. No final dessa década houve o notável caso da Universidade de Uberaba, que reestruturou todo o seu programa de ensino jornalístico em torno do Jornalismo Literário. Mas ainda há muito o que fazer, claro.

B.C.O Curso de Pós-Graduação em JL, lançado inicialmente pela extinta Academia Brasileira de Jornalismo Literário, surgiu de que maneira? Qual a necessidade da criação desse curso?

E.P.L.— Nasceu como vontade de um grupo de jornalistas e professores em levar o conhecimento do Jornalismo Literário para áreas mais amplas da sociedade e para o mercado. Até então, o conhecimento sobre a modalidade estava centrado em poucas universidades, particularmente no trabalho que eu desenvolvia na Universidade de São Paulo e que Celso Falaschi conduzia na PUC de Campinas, também em São Paulo. Entendíamos que já tínhamos um ótimo acervo de conhecimento teórico e prático do Jornalismo Literário. No meu trabalho da USP não ficávamos limitados a registrar e a mapear a área, mas também contribuímos para o avanço e a renovação do Jornalismo Literário, com a introdução, por exemplo, de conteúdos procedentes da psicologia humanista e de outros campos. Queríamos compartilhar tudo isso para além dos muros das universidades.

Sabíamos que muitos profissionais não queriam exatamente entrar na USP para fazer Mestrado ou Doutorado centrados em Jornalismo Literário, mas que preferiam cursos de caráter mais profissional do que acadêmico. Daí a iniciativa da pós que continua, sob minha direção, após o encerramento das atividades da ABJL em 2013. A criação da pós foi um passo a mais na nossa estratégia de divulgação do Jornalismo Literário. Nossa primeira medida foi criar o primeiro site do país especializado no assunto, o TextoVivo, que também existiu até o ano passado, tendo se tornado, no seu final, uma revista eletrônica e o maior acervo brasileiro de matérias produzidas em estilo de Jornalismo Literário.

B.C. Como o senhor desenvolveu e chegou à criação do método Escrita Total?

E.P.L.— Para atender a uma necessidade dos meus alunos de pós-graduação da Universidade de São Paulo. Quase todos eram jornalistas e adoravam o Jornalismo Literário. Mas quase todos, profissionais das redações, estavam limitados, na produção de textos, aos padrões convencionais do jornalismo informativo, à questão do líde e da pirâmide invertida, por exemplo. Quando precisavam produzir textos mais alentos, esteticamente melhor desenvolvidos, enfrentavam problemas. Vi que precisava ajudá-los a vencer bloqueios e a liberar o texto, como algo fundamental para se praticar o Jornalismo Literário. Através de pesquisas internacionais, estudos, experimentos e ideias próprias, fui formatando e ampliando o método, até chegar à maturidade que conquistou em 2009, quando então publiquei o livro do mesmo nome, configurando todo o método ali.

B.C.Para o senhor, como é o processo de escrever?

E.P.L.— Um processo de entrega quase total, quando estou produzindo textos longos. Dificilmente, nessas fases de mergulho intenso, consigo manter os horários do mundo cotidiano. Esqueço da hora de comer, durmo pouco, varo noites. Uma imersão total.

B.C.Dos seus trabalhos no Jornalismo Literário, para qual o senhor daria destaque? Por quê?

E.P.L.— Das obras teóricas, certamente “Páginas Ampliadas: O Livro—Reportagem Como Extensão do Jornalismo e da Literatura”, já em quarta edição, pela Editora Manole, por ser de fato o trabalho mais completo, extenso e panorâmico sobre o Jornalismo Literário, em português. Das obras narrativas, “Maestro de Voo – Pedro Janot e Azul – Uma Vida em Desafios”, por ser um trabalho que une as características do perfil e da biografia, contando uma extraordinária história de três faces: a história informal da Azul Linhas Aéreas, um caso espetacular de sucesso empresarial no Brasil, uma história humana de como nasce um executivo inovador, e a história fascinante de Pedro Janot, o garoto carioca que enfrenta os desafios de sua vida pessoal, o drama de um acidente trágico no auge da carreira, para se tornar personagem chave em capítulos relevantes da história empresarial brasileira contemporânea. Para quem está começando a conhecer a área, recomendo também “Jornalismo Literário Para Iniciantes”, que lancei pela Edusp, a Editora da USP, este ano.

B.C.E quais são os escritores que trabalham com JL que o senhor acredita que devem ser conhecidos?

E.P.L.— Dos grandes mestres norte-americanos, a Susan Orleans e o John McPhee merecem ser conhecidos no Brasil. Dos brasileiros, Christian Carvalho Cruz, Cristiano Castilho, Rodrigo Lopes e toda uma geração de novos autores promissores que tenho tido o privilégio de conhecer no curso de pós-graduação e que ainda poderão conquistar espaço merecido. Entre eles, Andrea Ascenção, Daiane Andrade, Juliana Diógenes, Pedro Dias, Beatriz Jucá, Lelia Romero, Saulo Marenda, Criselli Montipó, Karen Ferreira, Flávia Schiochet e Sarita Gianesin.