“Bom jornalismo é a reportagem que não reduz o mundo”

Colunista do El País Brasil, Eliane Brum ganhou mais de 40 prêmios, entre eles Esso, Vladimir Herzog, Ayrton Senna, Ethos e Sociedade Interamericana de Imprensa. A jornalista também conquistou o Prêmio Jabuti em 2007, por “A vida que ninguém vê” e o Prêmio Açores de Literatura de 1994 por “Coluna Prestes – O avesso da lenda”. Esgotado, este livro é resultado do trabalho de apuração feito em 1993, quando a então repórter do Jornal Zero Hora (RS) percorreu todo o caminho feito pela Coluna Prestes ao longo de 20 anos. “Foi esta reportagem que me forjou como repórter e na qual comecei a conhecer e a me apaixonar pelo Brasil e pelo povo brasileiro”, afirma Eliane. Na entrevista abaixo, temas como a carreira da jornalista, as novas mídias, o jornalismo literário brasileiro, as influências da autora, entre outros temas são abordados. Confira:

“O leitor está mais exigente”

Com as novas mídias, a tendência é que portais de notícias prezem cada vez mais pela agilidade da informação. Acha que as pessoas têm tempo e podem se interessar por conteúdos mais aprofundados e com uma visão diferenciada, como a que é proposta pelo jornalismo literário?

Eliane Brum – É um grande equívoco acreditar que a internet só foi feita para notícias curtas. A suposição de que o leitor não gosta ou não tem tempo para ler textos longos é um outro equívoco que a internet ajudou a desfazer. Grandes reportagens têm sido publicadas na internet. A Agência Pública é um exemplo de novas alternativas de financiamento e de compartilhamento de reportagens. Pela primeira vez é possível publicar artigos, entrevistas e reportagens com o tamanho que precisam ter, sem que isso represente custo adicional. Tenho uma coluna de opinião às segundas-feiras, no site da Época, e meus textos são sempre longos e em geral com vários links, para que o leitor possa se aprofundar ainda mais, se quiser, ou conhecer as fontes que usei para a minha pesquisa. Se fosse publicada na revista impressa, minha coluna teria, em média, cinco, seis, às vezes dez páginas. E as pessoas leem.

O filósofo italiano Massimo di Felice defende a teoria de que com as novas mídias e, principalmente, com as redes sociais, a figura do formador de opinião tradicional deixa de existir e o jornalismo entra em crise. Você considera que isso pode ser uma consequência da cobertura da mídia?

E.B. – O jornalismo se confronta com novas possibilidades e novos desafios a partir da internet e das redes sociais. Neste sentido, se é uma crise, é uma boa crise. Novos atores entraram em cena, assim como novas experiências narrativas. É o modelo de negócios que precisa ser revisto e que está sendo repensado nesta nova configuração do mundo. Para se fazer reportagem é preciso investimento – de tempo e de dinheiro. Mas a reportagem, como o ato de documentar a história em curso, continua muito viva e muito importante – e apenas ampliou suas possibilidades. Hoje, há muito mais gente escrevendo, dando opinião e contando sua versão dos fatos – ou contestando as alheias. Há também muito mais gente com acesso à informação, olhando e fiscalizando. Então, é preciso alcançar ainda mais qualidade, não só de texto, mas de apuração. O leitor hoje está mais exigente – e isso só pode ser bom para a reportagem. Na internet, credibilidade é fundamental.

“A piauí já se tornou uma referência na reportagem”

Quando falamos em jornalismo literário na atualidade, o grande nome que vem à cabeça é o seu. Como lida com isso?

E.B. – Fico muito honrada quando me identificam com o jornalismo literário porque sei que significa um grande reconhecimento ao meu trabalho como repórter. Mas, pessoalmente, prefiro chamar apenas de bom jornalismo a reportagem que não reduz o mundo, que busca captar não só palavras, mas silêncios, hesitações, texturas, gestos, delicadezas e contradições. A realidade é muito mais do que aspas, e esta criatura complexa, seguidamente escorregadia, é a matéria do bom jornalismo. Há muitos repórteres incríveis no Brasil, cada um com o seu estilo. E muitos deles fora do eixo Rio-São Paulo-Brasília.

Com que jornalistas você dialoga?

E.B. – Eu me criei no jornalismo impresso com grandes repórteres da Zero Hora, como Carlos Wagner, Nilson Mariano e Rosina Duarte, e isso só citando três, cada um deles com um estilo muito diverso. Tive a oportunidade, recentemente, de conhecer o trabalho da Daniela Arbex, e fiquei impressionada com a qualidade da apuração. De uma geração mais jovem que a minha, ela consegue fazer grandes reportagens no interior, na Tribuna de Minas, jornal de Juiz de Fora. A piauí já se tornou uma referência na reportagem. Quando o João Moreira Salles escreve, eu até sento melhor no sofá lá de casa, antecipando o prazer de ler um perfil bem apurado e bem contado. Daria para citar muitos outros nomes de repórteres que fazem toda a diferença, em todas as regiões do país.

“A história do povo que estava no caminho”

Que jornalistas e escritores te influenciaram?

E.B. – Muitos. Desde criança leio muito, o tempo todo, e todos os gêneros. Mas acho importante dizer que sou tão influenciada pelos livros que li e que leio quanto pelas pessoas que me contaram suas histórias durante os últimos 25 anos, nas várias e diversas paisagens brasileiras e também nas periferias das grandes cidades. Algumas destas pessoas eram analfabetas e eu me via diante delas extasiada com os achados de linguagem, com a invenção de palavras e com o ritmo da narrativa, pensando: “Nossa! Essa pessoa está fazendo literatura pela boca!”

Em 1989, você fez, para o jornal Zero Hora, uma reportagem sobre a inauguração de uma unidade do McDonalds em Porto Alegre. Você voltou para a redação com uma matéria sobre a chegada da modernidade em contraste com um grupo de idosos que jogava xadrez na praça. Na época, você estava começando no jornalismo. Acha que falta ousadia e criatividade no jornalismo atual?

E.B. – Esta reportagem era pequena, uma entre as três pautas do plantão de domingo. Conto esta história quando dou palestras ou entrevistas porque foi a primeira vez em que uma matéria minha foi publicada na íntegra, do jeito que eu tinha escrito. E isso foi depois de um ano no jornal. Conto também para que os estudantes de jornalismo saibam que a conquista do espaço dentro das redações ou fora delas não é fácil nem rápida. É um espaço a ser duramente conquistado, com trabalho, mas vale a pena resistir e insistir na reportagem porque resistir e insistir na reportagem é escolher uma vida com sentido.

Qual você considera sua primeira grande reportagem?

E.B. – Foi em 1993, ao refazer o caminho percorrido pela Coluna Prestes nos anos 20, para escutar a história daqueles que não eram nem rebeldes, nem governistas, mas o povo que estava no caminho. Foi esta reportagem que me forjou como repórter e na qual comecei a conhecer e a me apaixonar pelo Brasil e pelo povo brasileiro.

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Eliane Brum (foto) já ganhou mais de 40 prêmios por seu trabalho jornalístico e literário

“Na reportagem, não há milagre”

O jornalista Humberto Werneck fala no prefácio de Fama e Anonimato, de Gay Talese, na “arte de sujar os sapatos”. O bom jornalismo e o jornalismo literário podem ser feitos sem estar nas ruas?

E.B. – Não. A tecnologia pode ajudar muito, inclusive para localizar pessoas, descobrir histórias e acessar documentos, mas é preciso ir até o mundo do outro para compreendê-lo em todas as suas nuances e contradições. A reportagem é este exercício de se despir de si para alcançar o outro. E isso se faz carne a carne.

Como lidar com o desejo de fazer uma boa reportagem e os limites das empresas, que cortam gastos e visam a maior quantidade de textos com a maior agilidade possível?

E.B. – O repórter é aquele que documenta a história em movimento, a história da sua época. Se a gente esquece dessa enorme responsabilidade, em nome do comodismo e das circunstâncias, vira outra coisa. Há sempre caminhos para buscar, em geral um tanto árduos. Já levei cinco anos para conseguir fazer uma reportagem, mas fiz. Meus dois documentários – Uma história severina e Gretchen Filme Estrada – são histórias que quis documentar como repórter, não consegui e encontrei um jeito de contar como documentário, que é uma reportagem escrita com imagens.

Quando uma história nos chama, e a gente escuta esse chamado, ela não nos deixa mais dormir. O jornalismo literário pode ser aplicado a qualquer tipo de matéria?

E.B. – Existe bom e mau jornalismo. O bom jornalismo é aquele que se faz apurando todos os detalhes, atravessando a rua e mudando de ângulo várias vezes, sempre aberto para o espanto. Aquele que se ouve um pássaro cantar vai descobrir que pássaro era aquele, se diz que fazia sol no dia em que aconteceu um crime é porque checou com três sites de meteorologia diferentes para ter certeza de não errar, além de ouvir várias pessoas apenas sobre este detalhe específico. É na precisão dos detalhes, na quantidade de nuances, na reprodução do ritmo e da fala e no respeito pelas palavras do outro que a reportagem se faz substantiva e comprova sua qualidade e relevância. Na reportagem, não há milagre, e o talento para escrever não salva ninguém da preguiça. O cara pode ser um prêmio Nobel da literatura que, se apurou mal, vai escrever um texto ruim. E, sim, o bom jornalismo se aplica a tudo o que é da vida.

 

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A entrevista, atualizada para os leitores do blog, foi feita por Renata Cardarelli, do  portal Comunique-se, em março de 2013.

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