JL Entrevista: “O Jornalismo Literário é capaz de ir além do que mostra e questionar o que esconde”

Nilson Lage é uma das maiores referências do pensamento crítico sobre o jornalismo brasileiro. Com graduação em Letras (Português-Russo), mestrado em Comunicação e doutorado em Lingüística pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Lage trabalha atualmente como professor voluntário do programa de pós-graduação do Departamento de Jornalismo da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), instituição onde foi professor titular até novembro de 2006, quando se aposentou. Trabalhou ainda no Jornal do Brasil, Diário Carioca, Última Hora e Revista Manchete. Nesta entrevista o professor irá comentar sobre sua visão de jornalismo literário e o futuro do estilo no País. Confira:

JL Blog – Como você conceitua o termo “Jornalismo Literário”?

Nilson Lage – O jornalismo é, da perspectiva que nos interessa aqui, relato ou exposição de aparências da realidade. A literatura busca revelar essências.Claro que essa dicotomia é ponto de partida, não de chegada, para definição de áreas e, daí, eventual composição delas.
Jornalismo literário, nessa concepção, não é jornalismo sobre literatura. A crítica literária (ou de teatro, cinema, artes plásticas) pode ser jornalística, mas também cabe em ensaios acadêmicos e obras de divulgação didática.

“Jornalismo literário seria, assim, a narrativa ou exposição da realidade capaz de ir além do que mostra e questionar o que esconde. Obedece aos padrões da linguagem jornalística, mas é obra de um trabalho muito mais sofisticado e raro”

Há o jornalismo de ideias, que propõe sínteses explícitas sobre aspectos essenciais da realidade em forma de artigos, entrevistas, relatos ou depoimentos. No entanto, o que de mais importante deveria ser dito não pode, tantas vezes, ser dito, ou não seria notado, se o fosse: é preciso fazê-lo ser adivinhado ou inferido através de um lavor que tensiona o sentido das palavras, amplia cenários, compara e, assim, desvela.
É usual entender literatura como tratamento formal de palavras, o que ela é, mas não a faz notável tanto quanto o manuseio revelador dos sentidos. Há milhões de enunciados bem estruturados, criativos e sonoros que são literatura de segunda linha. Remetem ao que já se sabe, revelam o mais facilmente visível.

Jornalismo literário seria, assim, a narrativa ou exposição da realidade capaz de ir além do que mostra e questionar o que esconde. Obedece aos padrões da linguagem jornalística, mas é obra de um trabalho muito mais sofisticado e raro. Jornalismo literário não é o que, por outro lado, o imita. Por exemplo, o texto que apenas objetiva exaltar a tristeza, a revolta ou a resignação com o relato elaborado ou a exposição apaixonada de eventos irreparáveis que, remetem, em si, à tristeza, à revolta ou à indignação – por exemplo, a loucura nos manicômios ou nas famílias, a morte nas guerras ou a miséria nos guetos.

Ao fazer pedrear as pedras, na expressão do diretor de cinema russo Vsevolod Pudovkin, obtêm-se magníficas conclamações ideológicas, mas não necessariamente boa literatura.

JL blog Para alguns o Jornalismo Literário é sinônimo de subversão aos preceitos de jornalismo objetivo, predominante atualmente, e seus “mandamentos” (lead, pirâmide invertida…) e para outros é uma alternativa ao modo de reportar as informações friamente, de maneira engessada e “mecanizada”. Na sua visão o que representa o JL para o universo do jornalismo contemporâneo?

Nilson Lage – A técnica utilizada na redação de notícias reproduz a ordenação costumeira de alguém que comunica a outro um fato novo: começa pelo mais interessante para acrescentar, depois, antecedentes, consequências e comentários. Nos veículos midiáticos, a informação central deve ser acompanhada de circunstâncias (localização no espaço e no tempo, modo, causa etc.) que geralmente podem ser dispensadas ou inferidas no contato interpessoal. Isso foi o que ficou estabelecido como melhor critério, a partir do momento em que se adotou a produção em série de informação jornalística, no começo do Século XX e se pretendeu construir relatos voltados para o objeto.

Na tradição da mídia impressa diária, um conjunto de informações sobre o mesmo tema é condensado em um único texto noticioso. Se não houver fato novo ou tão importante que subordine os demais – só nesse caso – a abertura da notícia será comparável a um resumo.
A notícia não é o único gênero jornalístico nem mesmo o dominante. Apenas é básica: jornalistas devem saber o que é notícia em dado contexto e ser capazes de transmitir seu conhecimento com rapidez, clareza e objetividade. É tarefa talhada para intermediários humildes, que não exige criadores de obras de arte.

Pessoas acostumadas com narrativas de romances, novelas e contos podem estranhar a estrutura da notícia: é que, nesses outros gêneros de texto, os eventos são ordenados em séries sequenciadas no tempo e que se agregam umas às outras – forma que deriva do épico grego. Espera-se, a partir do romance sentimental (último quarto do Século XVIII),que as histórias sejam contadas de maneira homóloga a sua ordenação no tempo real – tenham começo, meio e fim que, no entanto, são sempre arbitrários: cada lance inicial tem passado e o o terminal admite sempre um futuro.
Na estrutura habitual dos ensaios – textos científicos ou didáticos –, séries de fatos alinham-se conforme proposições mais gerais ou sentenças-tópicos que os organizam de modo a dar-lhes algum sentido.

“Não há como contrapor um gênero a outro porque eles se diferenciam pela intenção e circunstância de uso. Fazê-lo é perda de tempo”

Os aspectos mais característicos do texto jornalístico são a importância que se dá aos fatos – a preocupação de documentar, exemplificar e concretizar o que se afirma – e a busca de linguagem que facilite a compreensão, isto é, de palavras e estruturas frasais cujo entendimento exija menor esforço de processamento mental, dependendo, naturalmente, da natureza do público-alvo, motivação, instrução e formação especializada.
Não há como contrapor um gênero a outro porque eles se diferenciam pela intenção e circunstância de uso. Fazê-lo é perda de tempo.

Nilson Lage é autor de livros importantes sobre jornalismo. Entre eles podemos citar “A Linguagem Jornalística” (1990) e “A Estrutura da Notícia” (1993)

Nilson Lage é autor de livros importantes sobre jornalismo. Entre eles podemos citar “A Linguagem Jornalística” (1990) e “A Estrutura da Notícia” (1993)

JL Blog – Você acha que o Jornalismo Literário tem possibilidade de crescimento no País ou é uma prática em desuso? Que nome você lembra quando pensa em JL no Brasil?

Nilson Lage –Discutir a atualidade do jornalismo literário implica considerar o que o jornalismo e o que é literatura hoje.

O jornalismo é, cada vez mais, conjunto complexo de linguagens articuladas em torno do objetivo de intermediar o fluxo social de informação. Inclui, separados ou em diferentes combinações, texto oral e escrito, sons e cores, comunicação gráfica estática e em movimento, imagens paradas e móveis.
As principais formas literárias de nosso tempo são o roteiro, o documentário e o ensaio.

Para esclarecer o conceito, dou dois exemplos:

1. No livro “The dogs bark”, de 1973, há um breve perfil de Marilyn Monroe. Na época em que o texto foi escrito, ela estava no auge da carreira, casada com Arthur Miller; ao que tudo indicava, era feliz e bem sucedida. Os dados coleados por Capote são testemunhais e objetivos: no entanto, a leitura revela, para além das palavras em si, a personagem trágica que, por fim, cumpriria seu destino.

2. No filme “Hearts and Minds”, de 1974, catarse da derrota na guerra pelo Vietnã que a América arrogante logo esqueceria, o diretor, Peter Davis, usa os limitados recursos sintáticos da imagem – e toda sua riqueza semântica – para desvendar o desempenho criminal do país que a propaganda escondia. O filme pode ser visto na Internet, em versão legendada em português e é, a meu ver, obra chave para se compreender como a realidade em sua essência pode ser buscada nos discursos que a escondem.

Creio que a atualidade do jornalismo literário deve conduzir à reportagem-documento e ao ensaio jornalístico. Acho difícil encontrar jornalismo literário em jornais impressos e na produção periódica para Internet: ele exige tempo e investimento intelectual que o tornam mais provável em filmes e livros.

“Creio que a atualidade do jornalismo literário deve conduzir à reportagem-documento e ao ensaio jornalístico”

Há exemplos em textos brasileiros recentes de recuperação histórica e no cinema. Para citar um nome, lembro Eduardo Coutinho, falecido recentemente. Chocante isso, até porque ele pouco usava narradores.

 

*A entrevista foi realizada via e-mail.

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